Certas PalavrasPágina de Marco Neves sobre línguas e outras viagens

Qual é a origem da palavra «guerra»?

Com os tambores a rufar no Leste do nosso continente, façamos uma pequena viagem no tempo, em busca da origem da palavra «guerra».

Uma palavra germânica

A palavra portuguesa tem origem imediata no latim — não o latim clássico, mas sim o latim medieval. Os falantes dos vários romances, a certa altura, importaram a palavra *werru do antigo frâncico, a língua germânica da dinastia merovíngia dos Francos, que também foi importada para o latim medieval da escrita, onde aparece como werra.

As palavras que os vários falares latinos importaram das línguas germânicas sofreram transformações. Uma das mudanças típicas era a transformação do som /w/ inicial em /g/. Foi o que aconteceu, por exemplo, em português, com a nossa guerra, que tem origem na *werru germânica.

Houve, no entanto, uma excepção: nos falares do Norte da França, as palavras germânicas eram importadas sem essa transformação. O francês normando, por exemplo, importou *werru como werre (e não guerre, como nos falares que deram origem ao padrão do francês actual).

Os normandos, como se sabe, plantaram muitas palavras no inglês. Foi o que aconteceu à tal werre, que se transformou em war. Sim, não parece, mas guerra e war têm uma história muito parecida. Temos uma palavra germânica importada para uma língua latina que, por sua vez, a exportou para outra língua germânica (o inglês).

Guerra de palavras

O latim clássico já tinha uma palavra para guerra: bellum. Ao longo da história, essa antiga palavra foi reutilizada para criar palavras como bélico ou beligerante. Por que razão preferimos, para o termo principal, a importação guerra?

Os germânicos transformaram-se, depois do fim do Império do Ocidente, na nova elite militar. Não é de estranhar que algumas palavras tivessem entrado na língua da população — ainda por cima uma palavra tão militar.

A palavra bellum, com as transformações típicas das várias línguas latinas, também iria acabar com uma forma demasiado semelhante (ou igual) a belo… Dê por onde der, na guerra entre estas duas palavras latinas (a velha bellum ou a mais recente guerra), ganhou a palavra vinda do Norte.

Uma vez dentro das línguas latinas, cada uma delas usou a palavra para criar mais palavras, de várias classes: em português, criámos nomes (guerreiro), verbos (guerrear), adjectivos (aguerrido), advérbios (aguerridamente)… A palavra também é usada metaforicamente com frequência — basta pensar na guerra contra uma qualquer doença.

Guerras e confusões

Fim da história? Ainda não. Podemos continuar a viajar no tempo: a palavra germânica que foi emprestada ao latim medieval tem origem na raiz proto-indo-europeia *wers-. (O asterisco na palavra indica ser uma forma reconstruída pelos linguistas.) Essa palavra, com menos saltos, deu também origem à palavra latina verrō, que nos deu varrer.

Como é que guerra e varrer têm a mesma origem, mas significados tão diferentes? A raiz *wers- significava algo como «arrastar», «limpar», «malhar» ou «debulhar». O percurso até varrer não é difícil de entender. Já a palavra germânica com a mesma origem (e que veio a dar à nossa guerra) herdou apenas o significado de «malhar» ou «debulhar», dando depois um pequeno salto metafórico para «criar confusão» (a confusão do chão depois da debulha).

Confusão: daí terá vindo *warru e, depois, guerra — estamos, de facto, a viver dias confusos.

[Nota: nesta crónica, faço uma pequena experiência gráfica — em vez de usar as aspas para assinalar as palavras comentadas, uso o negrito. Tal permite-me reservar as aspas para o significado das palavras.]

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Autor
Marco Neves

Professor na NOVA FCSH. Autor de livros sobre línguas e tradução. Fundador da Eurologos.

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5 comentários
  • Aqui no Brasil, usávamos a palavra parabélum ou parabelo com o significado de revólver ou garrucha. No famoso filme brasileiro, Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, há uma canção em que o cangaceiro Corisco diz que “eu me entrego só na morte com parabélum na mão.” Em tempo, eu prefiro Júlio César cruzando o Rubicão para ir para a guerra contra Pompeu e não para a “bellum”. E me lembrei do exército. Perder alguma coisa, você tinha que ressarcir o exército. Mas perder um material bélico, você tinha que responder a um IPM, ou o famoso Inquérito Policial e Militar. O chato é que havia um ábaco em papel de seda para orientar o tiro de obus que era considerado material bélico… Abraços, parabéns mais uma vez.

  • Ocorrem-me mais exemplos neste contexto:
    Guilherme – William
    garantia – warranty
    guarda-roupa – wardrobe

    Gostei do artigo.

  • Tendo a nossa “guerra” origem na *werru germânica, o que levou à “Krieg” germânica?

    Obrigado.

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